17/01/18

“Nós podemos ressignificar feridas, aprender com as dores, (...) porque ninguém sofre abandonado por Deus”


Em meio à campanha Janeiro Branco, voltada para os cuidados com a saúde mental, Jénerson Alves entrevista o psicólogo Liszt Rangel, um dos mais conceituados do país, que realiza palestras e oficinas tanto no Brasil quanto no exterior.  Além de psicólogo com atuação clínica, Rangel é jornalista, escritor e historiador com pesquisas acerca das Civilizações Antigas. Na condição de escritor, já publicou 10 livros, a exemplo de ‘Entre o ciúme e o amor’ e ‘Pensando com o coração – a influência das emoções em sua saúde’.

Levantamentos da Organização Mundial de Saúde (OMS) dão conta que o Brasil apresenta o maior número de pessoas com transtorno de ansiedade do mundo. Quais fatores são responsáveis por esse índice?

Divulgação- Créditos - Pautar Comunicação e Imprensa
São inúmeros os fatores que cooperam com esses quadros psicopatológicos, em especial no que você me pergunta a respeito do transtorno de ansiedade no mundo. Freud, já no século XIX, dizia que, simplesmente pelo fato de o homem estar na Terra será levado a experimentar uma angústia. Hoje, nós sabemos que a angústia é um dos sintomas da ansiedade. Quem nunca sentiu aquele nó na garganta? Um aperto no peito? Uma pressão acima do tórax? Um aperto no coração? Muitas vezes, esses são sintomas neurofisiológicos de um estado afetivo chamado angústia. Então, o paciente com transtorno de ansiedade generalizada pode desenvolver vários sintomas, inclusive um muito frequente – o sintoma físico da taquicardia, da sudorese abundante, da confusão mental, da falta de concentração, mania de perseguição, sentir-se vigiado pelo outro, instabilidade do humor, oscilação no próprio humor e irritabilidade encontrada facilmente nas palavras ou nas ações. Os fatores responsáveis por esse índice alarmante de transtorno de ansiedade no mundo se dão primeiro por fatores exógenos – ameaças de guerras e extermínio por vírus e bactérias, instabilidade sócio-econômica, falta de segurança nas ruas, descrença para com os poderes políticos e governamentais e até mesmo com o poder judiciário. Enfim, há toda uma ansiedade que gera o sintoma de uma neurose de angústia. Também há fatores endógenos, que são fatores internos, responsáveis também pelo desencadeamento desse quadro do transtorno de ansiedade generalizada. É bom observar que a ansiedade comum é aquela que se tem antes de uma palestra, antes de conhecer os pais da namorada, antes de fazer uma prova ou submeter-se a uma entrevista de emprego. Porém, a ansiedade, no sentido patológico, faz a pessoa desenvolver uma preocupação crônica. É nessa cronicidade que se instala a doença, o transtorno da ansiedade generalizada. Então, os fatores endógenos são encontrados no psiquismo do indivíduo, no vazio existencial, na perda de identidade, na falta de foco diante das questões profissionais, na angústia que o faz ficar volitando, sem encontrar seu próprio lugar e afastando-se cada vez mais da sua realidade e da sua identidade psíquica.

Há um versículo bíblico que afirma: “Porque, como imaginou na sua alma, assim é” (Pv 23:7). Em outras palavras, a linha de pensamento adotada por uma pessoa definirá os rumos que sua vida seguirá. O senhor concorda com esse ponto de vista? Se sim, de que maneira as pessoas podem preencher a mente de forma que venham a se libertar da ansiedade?

Sim. Esse é um provérbio bem interessante, que pode ser aplicado de forma interpretativa nos dias atuais. Acredito que tudo começa nos pensamentos. E acredito nisso não pela fé, mas pela convicção de quem acompanha pacientes portadores de ansiedade generalizada. O núcleo de preocupação crônica faz com que se desenvolvam sintomas neurofisiológicos. Ou seja, como Buda costumava dizer: “A mente do homem é como um macaco louco, que salta de galho em galho na área da razão”. Então, essa inquietação mental determina a perspectiva de vida ou a perspectiva de morte do paciente. Isso foi descoberto, inclusive, em campo de batalha. Durante a Guerra do Vietnã, os médicos – que ainda não haviam descoberto o poder da endorfina – descobriram, através de combatentes norte-americanos, que pisavam em minas. O primeiro que pisava na mina morria, os que estavam em torno tinham um pedaço do pé amputado, ou do braço, um dedo decepado. Os médicos perceberam uma coisa: aqueles que tinham perdido um braço e recebiam pouca morfina logo alegavam que a dor havia passado, mas aquele que havia perdido apenas um dedo polegar e aplicavam muita morfina nele, e ele não parava de reclamar da dor nem de chorar. Anos mais tarde, investigando esses combatentes, foi descoberta a atitude mental deles. Quem havia perdido uma perna ou um braço pensava imediatamente: “Para mim, a guerra acabou. Vou voltar para o meu país como herói de guerra, receber um bom salário na aposentadoria, vou rever minha mulher e meus filhos”. Isso se chama perspectiva de vida. Porém, aquele pobre soldado que só havia perdido um dedo pensava desta forma: “Que desgraça! Vão me mandar para o alojamento, serei tratado por uma semana. Depois de sete dias, vão me ensinar a atirar mesmo com o dedo suturado ou não, com a mão doente ou com a mão boa, que ainda me resta. Vou voltar para a guerra e, provavelmente, em menos de duas semanas, eu vou morrer”. Eles descobriram que não adiantava aplicar muita morfina, porque o indivíduo estava com perspectiva de morte, devido ao alto estado de angústia, de ansiedade. Foi a partir da década de 1960 que os cientistas passaram a descobrir o poder da mente ao produzir a endorfina, gerando um bem-estar psíquico e também um bem-estar físico.
Casos de depressão também têm sido crescentes em todo o mundo. Há um vazio na atualidade, conduzindo as pessoas a tão tenebroso pântano?

Sim. Os índices são alarmantes em torno da depressão. Estima-se que 16% da população mundial já teve, pelo menos, um episódio de depressão. Daqui para o ano 2020, a depressão será a segunda doença que irá mais matar gente, pois as doenças cardíacas ainda ocupam o primeiro lugar. Isso se explica, também, por fatores externos – condições de desenvolvimento social em países subdesenvolvidos, onde o indivíduo não dispõe de uma melhor qualidade de vida, mas também se descobriu que países como a Noruega, a Dinamarca, a Suécia e o Japão, os indivíduos também apresentam um vazio existencial. Isso seria, à primeira vista, uma contradição, porque eles conquistaram tudo, socialmente falando. Eles têm segurança nas ruas, têm poderes executivo, legislativo e judiciário que funcionam, ganham bem, têm casa, família, amigos. Então, por que eles têm depressão? Por que esses são os países que mais se destacam nos índices de suicídio? Porque eles esqueceram que, além de se realizarem pessoalmente e profissionalmente, o principal é transcender, esqueceram-se de saírem de si mesmos em busca do outro, para servirem de pontes e utilizarem do conhecimento adquirido para oferecerem uma palavra de consolo, um abraço afetuoso, fazer companhia a quem está doente em um hospital. Eles se esqueceram da autotranscendência. Uma psicóloga de Nova Iorque descobriu que uma das terapias mais adequadas, ao lado da psicoterapia, da terapia medicamentosa – receitada pelo psiquiatra – é o indivíduo aprender a servir, a transcender. Essa psicóloga nova-iorquina verificou que pessoas que têm o exercício de exercer a caridade – e não a exercem em troca de algo, mas gostam de ajudar os outros – saem mais facilmente do quadro depressivo.

É possível constatar feridas nas almas de muitas (se não todas) pessoas que nos rodeiam. O que me parece é que, de alguma forma, a vida – pessoas que amamos, colegas, circunstâncias – poderá produzir mazelas dentro de nós. Na praticamente impossibilidade de não termos feridas na alma, a solução para encontrar a cura seria aprender a lidar com elas? De que maneira isso é possível?

No Budismo, há um ensinamento voltado para o sofrimento, que é o resultado das nossas relações interpessoais. Vejamos que para nascer na Terra, se não tomamos vacinas portadoras de anticorpos para doenças fatais, implica dizer que nós, em poucos meses de vida, poderemos até morrer. Conviver uns com os outros é uma arte, e exige respeito, confiança e solidariedade, porque o homem é um animal racional e social. Ele não consegue sobreviver isolando-se, tanto é que todos nós, de uma certa maneira, dependemos uns dos outros. A sociedade já imaginou o dia em que nós não tivermos mais os chamados garis, os que limpam as ruas da falta de educação dos transeuntes que não jogam o lixo no lixo? Imaginem se esse lixo ficasse amontoado, sem ser levado para nenhum local? Nós já teríamos sofrido muitas epidemias, inúmeras doenças, entre elas a volta avassaladora da hanseníase!
Então, não há independência total. Esse é um estado de idealização. Não há uma autonomia completa. Todos, para crescermos, dependemos, de certa forma, uns dos outros. Quando nascemos, tão vulneráveis que estávamos, dependemos do olhar da figura materna, paterna, ou daqueles que nos educaram. Foi através do olhar do outro que nós crescemos e de seres desejados pelo olhar do outro passamos a ser seres desejantes. No desejo encontra-se o movimento da vida. O problema, portanto, não é o desejo, mas o que desejamos, que pode nos trazer um bem-estar ou um mal-estar psíquico.
Essas feridas na alma são importantíssimas, desde que tentemos trabalhá-las ao ponto de elas se tornarem cicatrizes, que mostrarão não apenas o quanto vivemos, mas como vivemos. Quem tem feridas na alma, sabe que as tem; então, não é preciso ninguém estar apontando o defeito de ninguém. Imagine uma pessoa com o braço quebrado e outra dizendo: “Olhe o móvel, aí, para não bater o braço quebrado, olhe a mesa, olhe o sofá...” Não! A pessoa está com o braço quebrado. Ela sabe. Mas há pessoas que têm suas feridas na alma e, para não se mostrarem fracas, erguem os chamados mecanismos de defesa. Sendo assim, jamais tratarão suas feridas e terão mais facilidade em observar as feridas dos outros do que as suas próprias.
Todos nós, naturalmente, iremos nos marcar – em família, na escola, no trabalho. Essas marcam definem nossa identidade e nossa personalidade. Elas ajudam a construir quem somos, o que não implica dizer que somos pessoas acabadas, porque nós podemos ressignificar feridas, aprender com as dores, aprender a mensagem e o sentido do sofrimento em nossa vida, porque ninguém sofre abandonado por Deus, ninguém sofre por acaso ou por falta de sorte, muito menos pela presença do azar. Há um sentido para a dor, assim como há um sentido para essas feridas. Vejamos os casos das pessoas que foram vítimas do tsunami e saíram muito mais fortalecidas, ou das pessoas que foram vítimas do rompimento da barragem de Mariana-MG, que hoje se revelam muito mais resilientes! Vejamos os relatos de pessoas que sofreram maus tratos na infância e hoje são excelentes pais e mães e não transferiram para os filhos as suas feridas morais, porque aprenderam a ressignificá-las e ficaram conscientes que não poderiam gerar uma bola de neve nem tornar seus filhos vítimas dessa herança maldita a que todos – ou quase todos – fomos submetidos.

Em algumas músicas e obras literárias/televisivas, o amor é apresentado como um sentimento controverso, egoísta, unicamente biológico e obsessivo. Na sua opinião, existem equívocos no que costuma se conceber como “amor”? Esse tipo de engano pode ser nocivo?

O amor, em nossa sociedade, ainda é pouco apreciado por ser muito ignorado e pouco compreendido. Recebemos a conceituação do amor, em primeiro momento, da família – que a recebeu da religião, em especial do Cristianismo. O Cristianismo ensina que Deus é amor incondicional, mas quando lemos a Bíblia, vemos que Ele não é tão incondicional assim, porque Ele se arrepende de ter criado o homem e resolve destruir um planeta inteiro através da água, escolhendo apenas uma família para repovoar o mundo. Ele, antes disso, cria o mundo e coloca um homem e uma mulher para desfrutar do melhor do Éden, mas quando o casal contraria Sua vontade e toca na árvore do conhecimento, Deus resolve expulsar o casal do bem-bom do paraíso. 
Então, vejamos que desde as tradições judaicas, recebemos no nosso inconsciente coletivo, aqui no Ocidente, essa crença de que quem ama maltrata. Quem ama exclui. Quem ama humilha, agride e quem ama pode até matar. Então, isso não é amor.
Vejo pessoas que chegam ao escritório dizendo que estão sofrendo por causa do amor. Mas elas percebem, através da terapia, que estão sofrendo porque não estão sendo correspondidas – algumas vezes – no ego, nos caprichos que não serão mais atendidos. Estão sofrendo pelos sentimentos de rejeição, de menos valia, porque o amor, por si só, pacifica. Tanto é que, quando estamos amando, cantamos com os pássaros, conversamos até com os animais na rua. As pessoas acham que estamos loucas. Veja o quanto o amor inunda o cérebro de endorfina, de serotonina, de noradrenalina, hormônios necessários ao bem-estar.
Porém, vemos pessoas sendo amadas, mas que continuam infelizes, porque o homem (no sentido geral, homem e mulher) hoje vai para uma relação amorosa desejando ser amados, que os façam felizes, mas poucos se dispõem a ir a uma relação para amar e fazer feliz. O mais interessante é que quando o ser amado vai embora de nossa vida, nós – que amamos – sofremos, é claro, pois gostaríamos de ter aquele sorriso e aquela companhia ao nosso lado. Mas nós voltamos a ser felizes, porque nós não damos amor, nós compartilhamos amor. Então, nós compartilhamos com ele ou com ela. E infelizes são aqueles que não souberam amar quando foram amados, mas nós que amamos voltamos a ser felizes, pois é do amor fazer feliz e não adoecer ou humilhar nem machucar.

O senhor também é um estudioso do Jesus Histórico e do Cristianismo Primitivo. Sabe-se que, além dos registros dos evangelhos, Cristo é mencionado em outros documentos históricos, a exemplo de autores como Flávio Josefo, Tácito e Suetônio. A partir da história de Jesus de Nazaré, existem possibilidades de encontrar lições e exemplos e aplicá-los em nossa vida, no intuito de desenvolvermos uma mentalidade moderada e disciplinada?

Eu diria que, após pouco mais de 17 anos voltados para os estudos do Jesus Histórico, posso afirmar que Jesus de Nazaré é muito mais conhecido nas universidades do que entre os próprios cristãos. Isso porque nós passamos a seguir um mito crucificado, morto, ensanguentado, cujo olhar se volta para um ponto abstrato e seu olhar está sempre depressivo, enquanto que o verdadeiro homem de Nazaré era altivo. Apesar de humilde, era autoconfiante. Sabia lidar com pessoas de todas as classes sociais. Foi entrevistado por um procurador de Roma, que era prefeito de Jerusalém, à época, e conviveu com pescadores ignorantes, como Pedro.
Jesus de Nazaré é um exemplo a ser seguido, mas não é o único caminho para a humanidade encontrar a paz. Caso contrário, estaríamos impondo a outros povos, com outras culturas, formados por outras religiões, como o Hinduísmo, o Judaísmo, o Budismo, impondo o Cristo Salvador da humanidade pecadora. Ou seja, quem não conhecer a Cristo não conhecerá jamais o amor, muito menos a salvação. Interessante é que existem ateus que amam muito mais do que muitos cristãos. Há ateus com condutas retas, que não são hipócritas como muitos cristãos. Então, a questão não está no rótulo, mas na compreensão do sentido da mensagem deste Homem de Nazaré, que seu nome original é conhecido como Yeshua, filho de Miriã e Yousseff.
Sim. Há poucos documentos a respeito de Jesus de Nazaré e, mesmo os poucos, não são tão confiáveis. Até mesmo os registros de Flávio Josefo foram adulterados e manipulados por interesses dos cristãos católicos. Para termos uma ideia, apenas 10% – esse é um dado estatístico, que foi levado a essa conclusão após 32 anos de pesquisas de teólogos, exegetas, biblistas – do que se encontra no Novo Testamento é, realmente, em mensagem e atitudes pertencente ao Homem de Nazaré. Menos de 10%. Isso implica dizer que mais de 90% do que se diz a respeito do que Ele falou e fez, na verdade, Ele não fez e nem falou. São enxertos, adulterações, manipulações.
Você poderia, então, me perguntar: “Mas, menos de 10%? É pouca coisa!” Os especialistas acreditam que esses menos de 10%, que é original de Jesus, encontram-se no Sermão do Monte. Talvez tenha sido por isso que Mahatma Gandhi, já naquela época, teria dito que se todos os livros sacros da humanidade fossem queimados e restasse apenas o Sermão do Monte, nada estaria perdido. E ele não era cristão. E compreendeu muito mais a mensagem de Jesus de Nazaré do que muitos cristãos.
Então, se pelo menos tirarmos do Sermão do Monte o código de ética, de princípios morais capazes de transformar uma sociedade intrinsecamente, de dentro para fora, não de fora para dentro. Seria capaz de curar o homem de suas mazelas espirituais, de seus dissabores morais, de suas desilusões amorosas e elevá-lo do patamar material para o nível espiritual. Porque, segundo o próprio Jesus de Nazaré, o reino que Ele vinha apresentar aos Seus ouvintes não estava neste mundo. Ele pode até começar neste, mas não está aqui. Este reino, segundo Ele, estaria, ou seria encontrado, dentro de cada um de nós.

Que mensagem você gostaria de deixar para os leitores do Blog do Paulo Nailson?

Agradeço aos amigos do blog e desejo um ano de 2018 repleto de oportunidades aos leitores. Ainda que nos faltem essas oportunidades, saibamos aproveitar as faltas, pois elas são profundamente motivadoras para o nosso crescimento. Se nós não estivéssemos enfrentando uma grande crise neste país, não estaríamos vendo tantas mudanças sendo operadas para uma melhor qualidade de vida. Aquela família que experimentou falta de emprego descobriu um talento na costura ou na culinária e, depois de algum tempo, montou uma loja de moda ou abriu um restaurante. O que trouxe sucesso a essas pessoas não foi a oportunidade, mas a oportunidade se apresentou através da falta. Então, que este ano não seja somente rico de oportunidades, mas também de faltas para o nosso crescimento. Um forte abraço em todos os leitores! Muito obrigado pela atenção.


Um comentário:

Unknown disse...

Excelente!!!